terça-feira, 3 de maio de 2016

OSCAR RIVERA-RODAS | A poesia de Jaime Sáenz


A poesia de Jaime Sáenz é uma das experiências mais audaciosas da lírica hispano-americana atual; foi apontada como contribuição notável “à cultura continental no último meio século” e definida como uma “luta por chegar à identidade do eu consigo mesmo, à autenticidade”, como esforço metafísico que “quer conhecer o rumo final das coisas”, ou seja, “o próprio Ser”.
Com efeito, para Sáenz, o ente das coisas - o ser essencial concebido pelo pensamento - é imóvel e uno. Esta unidade abarca, obviamente, tanto o objeto contemplado como o sujeito contemplativo. Na revelação do ente se produz a fusão do sujeito pensante e das coisas pensadas. O poema II de Muerte por el tacto (1957) refere-se à experiência de semelhante revelação: “saberemos que tudo é o mesmo / e que no entanto é distinto / as coisas serão imóveis como nunca, as pessoas alcançarão uma dignidade jamais alcançada / não haverá palavras e o silencioso mundo viverá somente para ser sentido - desaparecerá a maligna diversidade e tudo será uma coisa só / para ser sentida / por um só / … / sim, tudo será uma coisa só.”
Mas também o poeta reconhece que seu primeiro contato com as coisas não é outro senão através da aparência destas. Ou seja, reconhece que sua experiência não se relaciona tão-somente com as coisas pensáveis, mas também com as sensíveis. [1] Daí que recorra aos sentidos, particularmente o tato, para conhecer as coisas: “os sons, as formas e as cores entrarão em ebulição e se fundirão com o mundo e contido em uma só coisa / e o tato terá absoluta, lúgubre e alegre preponderância”; “tudo é mobilizado pelo tato desde o princípio dos tempos”.
Nestas circunstâncias, quando se enfrentam as operações inteligíveis e sensoriais do conhecimento, surgem conflitos às vezes irresolúveis, que forçam a imaginação (obrigada a renovar audaciosamente significados desconcertantes) e a argumentação retórica de paradoxos e sofismas (que se convertem assim mesmo em uma renovada fonte de significantes).
Desdobrarei o presente estudo através de quatro fases que implicam aspectos importantes da poesia de Sáenz: 1. O sentido da revelação. 2. O conhecimento sênsico e sinestésico. 3. O conhecimento racional. 4. A modificação dos significados.
1. O sentido da revelação. O poema I do primeiro volume, Muerte por el tacto, é uma exortação à revelação das coisas; revelação, além do mais, mediante o “desconcerto” ou “aniquilamento” da ordem natural e convencional. A primeira parte do poema, integrada por 38 versos e versículos, apoia sua estrutura semântica sobre dois sintagmas exortativos e anafóricos (versículos 23 e 25). O primeiro afirma: “é necessário… poder ver melhor a luz das coisas”. O segundo encabeça uma larga enumeração heterogênea e citá-lo-ei ligando-o com o versículo 31: “É necessário que recordem todos… as rigorosas alegações em favor do desconcerto, de uma antiordem, para o retorno profundo ao verdadeiro ordenamento”. A alegação em prol do aniquilamento representa a necessidade de anular a ordem aparente em que se sustenta o conhecimento ordinário e convencional, e a possibilidade de descobrir a ordem veraz e essencial. Esta primeira parte do poemas exorta à revelação das coisas. Assim - seja dito de passagem - começa a definir-se o sentido não somente do primeiro livro de Sáenz mas sim de toda sua obra poética. Desta maneira, Muerte por el tacto é, além de ser o primeiro poemário, fase inicial do enfrentamento com o problema metafísico em questão. Esta fase inicial consiste em “aniquilar / aquilo que está demais” em favor do conhecimento. No poema II do mesmo volume diz: “Quando nada mais tenha que minha alma e tenha deixado para trás o inútil, o que tão-somente deixa viver porém não determina a razão dos caminhos - quando tenha cortado meu falar e apenas mantenha relação cristalino com as coisas / esse será o dia em que diga / sou feliz / comigo ou sem mim”.
Esta circunstância de avançar ao “encontro final com o mundo”, entendida como a revelação essencial das coisas, poderia ser chamada também de “exercício ascético”, pelo qual a visão da essência das coisas implica a eliminação das aparências [2] e a disposição mental para transcender as coisas na busca de sua essência. Esta circunstância implicaria, ainda assim, a comprovação do conhecimento das coisas. Até que não ocorra dita comprovação as coisas serão conhecidas apenas aparentemente, sob o entendimento das convenções culturais. O conhecimento será falido. E a linguagem, como instrumento do conhecimento e expressão do mesmo, será também falida. Este princípio está exposto assim: “…não se comprovou ainda nada e portanto é possível afirmar coisas incríveis sem risco de cair em desgraça perante os homens”. Dez anos depois, em El frío (1967), a verdade é definida sob essa mesma concepção: “Assim é a verdade por mais que pareça mentira, e não vá você crer no que se diz, pois não se sabe com toda certeza que coisa será o Sol”. Os fatos mais insólitos para o convencionalismo comum e tradicional são, pelo contrário, lógicos para a ordem nova - a “contra-ordem” - consequente do conhecimento essencial das coisas.
2. O conhecimento sênsico e sinestésico. Um dos conflitos principais - e paradoxo básico - desta concepção aparece quando reconhece que a experiência não se relaciona tão-somente com as coisas pensáveis mas também com as qualidades sensíveis das mesmas. A percepção é paradoxalmente instrumento imprescindível do conhecimento, particularmente o tato que está “a serviço do elementar / de modo que nada turve seu uso e benefício / e tenhas afinal algo mais concreto que o olhar e a vida”.
O sentido da vista, tradicionalmente ligado à capacidade cognoscitiva - pois ver é conhecer -, torna-se invalidado nesta concepção: não é fonte fidedigna do conhecimento. Ao contrário, o tato recebe completa confiança. Ao longo destes textos se observa frequentemente subjugação da vista ao tato. [3] A própria epígrafe de Muerte por el tacto mostra esse enfrentamento. Diz: “(Manifestando estupor ante o trocista do olhar)”. Troça, neste contexto, bem pode ser sinônimo de arbitrariedade. Em outra página do mesmo volume fala-se do “caos do olhar”.
O tato não ocupou sempre uma escala de dignidade entre os sentidos na tradição da cultura. Sua hierarquia tem sido inferior e sua característica a libido. Olho e ouvido, em troca, têm sido destacados “como os sentidos espirituais mais excelentes - de acordo com a concepção platônico-cristã, no fundo, corrente até hoje em dia”. No entanto, o tato também mereceu estima por operar com exatidão especial, segundo Aristóteles, ou como “erudito assíduo e de ampla orientação”, segundo Schopenhauer. É possível citar ainda, na história dos sistemas filosóficos pré-socráticos, os atomistas (Leucipo e Demócrito especialmente) que consideravam o tato instrumento essencial para o conhecimento. De acordo com a doutrina atomista, para a qual todas as coisas se compõem de átomos e de vazio, toda sensação deve explicar-se sob a forma de contato ou tato”.
A experiência que mostra a poesia de Sáenz não deixa de ser desesperada e paradoxal. O sujeito poético tenta relatar pela via sensorial revelações obtidas por vias intelectivas e metafísicas: “Viste - ou te viste - sentado diante de algo porém não quiseste vê-lo porque quiseste apalpar-te e teu corpo não havia - entre lufadas viste e não havias - te apalpaste e recordaste teus sonhos porém não querias saber e por isso teu tato não queria nada e não quiseste apalpar-te para não deixar de crer que ainda não havias”. Esta experiência oscila entre o assombro da revelação essencial metafísica e a angústia da incomunicabilidade por uma linguagem que só consegue referir as aparências. Os sentidos entram em pugna aberta com o intelecto; o pensamento, com a linguagem; o significado, com o significante. A experiência não pode emergir de seus limites sênsicos ou sinestésicos que, no plano da expressão, são em última instância metafóricos. Falta a linguagem apropriada para expressar a apreensão puramente intelectiva. Não é estranho então que a linguagem adote paradoxalmente formas sensoriais para referir intuições incorpóreas do Ser. Daí que esta substância seja expressa mediante variadas sensações:
a. Sensações visuais. O conhecimento último e absoluto dar-se-á em um meio obscuro, segundo Recorrer esta distancia (1973): “Na escuridão profunda do mundo haverá de dar-se a sabedoria”. No mesmo livro se lê: “O verdadeiro, o real, o existente; o ser e a essência é uno e obscuro. / Assim a escuridão é a lei do mundo; o fogo alenta a escuridão e apaga-se - é devorado por esta.”
b. Sensações olfativas. Talvez a despeito das formas visuais, o sujeito poético de Visitante profundo (1964) afirma: “Vou ao bosque de folhas amarelas e quebradiças / ver o que estranha a vida, a infância do tempo e o instante da luz / … / e caminharei com os olhos fechados, / orientado pela fragrância das transformações e dos fogos.” Em Recorrer esta distancia diz: “Na ânima substancial, da sincronia e da duração do mundo, / … / faz-se perceptível um cheiro, que poderás reconhecer facilmente, por não haver conhecido outro semelhante; / o cheiro da verdade, o único cheiro…”.
c. Sensações audíveis. O sujeito pode intuir a essência mediante o ouvido. Em Muerte por el tacto afirma: “Tocas em ti e não há música. Tocas em ti e subitamente sabes que não há tu, e o que tocas não serve senão para saber que não tocas”. Em Visitante profundo: “…o ouvido atento às claras revelações de uma trombeta transmutadora do desejo da luz”. Em El frío: “aquela voz que percebo e que necessito escutar antes de seguir”.
d. Sensações táteis. Não citarei exemplos deste caso, pois ressaltam nas citações ao longo deste artigo.
A variedade de representações sênsicas e sinestésicas do Ser levaria a afirmar que o conhecimento da substância deste se efetuaria através dos sentidos. Porém o conhecimento sensorial da realidade não conduz ao conhecimento essencial da mesma. Um dos textos mais recentes (1978) afirma: “No cheiro e na forma, no passo, na densidade. No tato e no ouvido - o objeto não se vê. / O que se vê é o olhar que se está vendo; e talvez seja o olhar dos mortos, que consiste no não olhar. / É obscuro. / E por isso mesmo, nem se vê, nem se toca, nem se cheira, nem se escuta - na escuridão, / tudo ocorre ao mesmo tempo e de um só golpe.” [4]
A via sénsica, em conclusão, carece de comprovação a respeito da verdade que somente é apreendida pela mente e sua faculdade inteligível. No entanto, graças à percepção e seus recursos podem ser descritas - mesmo sabendo o caráter metafórico dessa descrição - as experiências realizadas na tentativa de aproximação da essência do Ser. Frente a estas circunstâncias, é necessário ver desde outro ponto de vista a índole da descrição fenomênica e sua relação com o conhecimento.
3. O conhecimento racional. O problema que se coloca, segundo o que dissemos até agora, é o seguinte: como conjugar a descrição fenomênica e a experiência puramente inteligível que se quer representar. Dito de outra maneira: Se, por um lado, o conhecimento direto das coisas - considerado basicamente sensorial e aparente - é convencional e incomprovável com relação à essência das mesmas coisas. Se, por outro lado, toda tentativa de aproximação da essência terá que recorrer sempre à descrição sênsica e sinestésica. Como explicar esta oposição e paradoxo? Este problema pode ser observado a partir de dois pontos de vista: a) desde o reconhecimento da ficção dos sentidos, cuja tradição antiga encontrou um campo especialmente fecundo em certo tipo de literatura religiosa; e b) desde apsicologia e a teoria do conhecimento racionalistas, que deram apoio a importantes avanços da linguística moderna. Explico:
a. É sabido que dentro da ficção mística dos autores religiosos a mente é concebida sob o modelo corporal. O espiritualismo de tais autores recorreu ao padrão do corpóreo e material. A mente é concebida como imagem fiel do corpo. Assim, para o cristão Alexo Venegas, no século XVI, “a alma tem suas orelhas, narinas e bocas, mãos e pés, com todos os outros membros do corpo”. Prefiro entender o fenômeno perceptivo de índole interior a partir da explicação seguinte: “Os sentidos interiores ou espirituais, implantados especulativo-metaforicamente, deslocaram a vivência da proximidade de Deus ou, em seu caso, sua descrição, para um terreno incorpóreo; isso sim, sem que o leitor perdesse a sugestão de impressões sensíveis concretas; pelo contrário, esta sugestão fica retida precisamente pela analogia e o paralelismo entre os dois terrenos.” O caso de Sáenz não implica, certamente, uma “vivência da proximidade de Deus”, mas sim uma vivência da proximidade da essência do Ser. O objeto último de sua preocupação não é Deus, e sim o Ser. Nos dois casos, de qualquer maneira, temos uma vivência da proximidade do não conhecido, com o desejo aceso de conhecê-lo mediante a apreensão inteligível, não pela via ordinariamente sensorial.
b. Outro ponto de vista oferece a filosofia idealista. Para Descartes, “os sentidos não nos apresentam ideia alguma das coisas, segundo a forma em que as contemplamos através do pensamento. A tal ponto que em nossas ideias não há nada que não fosse inato na mente, ou faculdade de pensar, com a única exceção das circunstâncias que apontam para a experiência… Porque dos objetos externos nada chega a nossa mente através dos órgãos da percepção salvo certos movimentos corporais.” Para esta mentalidade idealista, todas as noções - que para os empiristas haviam sido transmitidas pelo sensório ao pensamento - são inatas e preexistem na mente.
Dos dois modos de conceber o fenômeno puramente inteligível, a ficção mística e a concepção racionalista, é necessário no entanto emergir a representação de dito fenômeno no discurso, entendido seja como processo do discorrer intelectual, seja como expressão desse processo no texto linguístico. A intuição intelectiva rompe seus limites e abandona sua pureza no momento em que é substituída por uma representação no discurso; ou seja, no momento em que se converte em um fenômeno puramente parcial: o significado do signo linguístico. A partir desse momento, aquela intuição intelectiva da verdade não é mais que uma fonte distante ou, mais ainda, uma mera evocação no signo linguístico, que assume e desenvolve sua própria função. Essa complexa função torna cada vez mais distante e inadvertível a original intuição inteligível, porque o signo linguístico, além de proporcionar uma representação (significado conceitual), “não funciona somente - descreve Coseriu - em relação com o falante (‘manifestação’ ou ‘ expressão’), com o ouvinte (‘apelação’) e com o mundo extralinguístico (‘referências’, ou seja, designação através do significado), mas sim que funciona ao mesmo tempo em e por uma rede complementar e muito complexa de relações, com o que surge um conjunto igualmente complexo de funções semânticas cuja totalidade se pode chamar de evocação.”
Diante da necessidade de representar no texto suas intuições originais apreendidas em fenômenos puramente inteligíveis e incorpóreos, Sáenz reconhece tanto a existência do que podem ser os sentidos interiores como o conhecimento puramente ideal sobre toda experiência empírica. A visão é de ordem interior, se o inteligível pode ser considerado metaforicamente assim frente à visão exterior - sensorial - do mundo. No poema I de Merte por el tacto tal índole fica definida: “e é assim que saio encurvado a contemplar o interior da cidade e uso do tato de minhas obscuras entranhas / no secreto desejo de encontrar ali, ali o meio propício para fazer com que o mundo seja envolto pelo esquecimento / … / para que o esquecimento seja a força motora e suprema e para que do esquecimento surja apenas o esquecimento / … / e para que no curso das idades o esquecimento chegue a gerar solidão”.
Os conceitos de interioridade e obscuridade são básicos na visão de Sáenz e se encontram ao longo de toda sua obra para definir a índole do conhecimento inteligível, ao qual se condicionam as descrições sênsicas e sinestésicas. O conhecimento inteligível terá em aparência uma descrição sensorial. Não há outra opção senão representar as noções puras e imateriais por formas concretas. No entanto, o significado destas formas se modificam para expressar sua vivência da proximidade do Ser. Um dos recursos desta modificação que se adverte com certa frequência é o reconhecimento dos opostos. Desse modo, o não-ser, no vocabulário de Sáenz, não é outro senão o Ser, o qual entre suas múltiplas designações é também esquecimento e solidão. Antes de nascer, os seres são o Um, ou seja, o ente essencial: esquecimento e solidão; e através do conhecimento inteligível podem recuperar esse mesmo estado original: não-ser. Aos versos transcritos não citação anterior, seguem os seguintes: “porque já fomos esquecimento e solidão quando nada sabíamos - quando não tínhamos a noção da orelha e da dor / … / eu te anuncio que sabemos e seremos / … / conhecemos as pessoas mas apenas tal qual são e não as sabemos tal qual não são / embora careçam da faculdade de não ser porque não sabem que podem não ser e ser”.
Com esta passagem podemos entender que o sujeito poético ultrapassou em seu conhecimento o limite do concreto (captado pelos fenômenos sensoriais) até o inconcreto (apreendido pelo processo puramente mental). A denominação convencional e tradicional de ser, empregada para o concreto, carece de sentido aqui e não pode aludir ao que é incorpóreo e contemplado no ato original da intuição intelectiva. O não-ser, nesta circunstância, não é uma negação do Ser, mas sim um referente novo. Esta linguagem poética trata de conter aqui o que o referente ser do vocabulário tradicional não mostra. Em outras palavras, enquanto o significante ser alude ao objeto dos sentidos, o significante não-ser refere ao objeto do pensamento. Por outro lado, o ser e o não-ser, em sua índole de elementos opostos, podem representar uma mesma unidade essencial [5]. O sujeito poético de Sáenz, diante dessa parelha de elementos, elege o segundo (não-ser), porque este predomina sobre o outro (ser) no momento de sua intuição ininteligível.
4. A modificação dos significados. A partir da última citação de Sáenz podemos inferir o seguinte: não sabemos o que podemos não ser ou ser; e devido à ausência desse conhecimento carecemos da faculdade de não ser. O conceito “o que não sabemos” origina uma parte notável da argumentação poética desses textos. O poema III de Muerte por el tacto afirma: “Nada pode me convencer do quanto estou enfermo, mascando o que não se sabe, à espera da revelação…”. Assim como o saber significa a capacidade de conhecer o ser, o não saber surge como possibilidade de conhecer o não ser. Somente assim entenderíamos o paradoxo citado, pois “pensar o que não se sabe” é em si não somente ilógico como também impossível.
Junto às noções de não ser e ser, não saber e saber, estão também, entre outras: vida e viver, morte e morrer, que requerem uma explicação, mesmo que breve. No poema II de Muerte por el tacto lemos: “Não pode haver solidão mais irremediável que a do próprio viver”. Isto não implica um fastio da vida. Em Recorrer esta distancia, publicado dezesseis anos depois, observa-se esta diferença: “O que terá que ver o viver com a vida; uma coisa é o viver, e a vida é outra coisa.” E em Visitante profundo já havia sido escrito este sintagma: “não é necessário viver, mas é necessária a vida”. Explico:
Porque “viveremos sempre nos outros mesmo que não cheguemos a sabê-lo”, o viver carece de importância. Viveremos sempre, porque somos essencialmente o Uno. O viver é um acidente secundário e temporal, razão porque se desqualifica perante a categoria do essencial. Mais ainda, o viver é um obstáculo para o conhecimento do Ser. Assim está dito em Recorrer esta distancia: “Enquanto viva, o homem não poderá compreender o mundo; o homem ignora que enquanto não deixe de viver não será sábio. / Tem apreensão por tudo quando confina com o sábio; enquanto não pode compreender, já desconfia / - não compreende outra coisa que não seja o viver.” Pelo contrário, para a concepção do Um, “Vida e morte são uma mesma coisa”. A vida é tão necessária como a morte. E diante da morte, o morrer tem também um valor secundário como o viver. Tanto a vida como a morte representam a possibilidade do conhecimento do essencial. Se o viver é rejeitado, o morrer também deve sê-lo. “Quero a morte, porém não morrer”. A sabedoria se dá tão-somente no conhecimento da vida e da morte. O poema X de Recorrer esta distancia - chave na poesia de Sáenz e que sigo citando - afirma que enquanto viva o homem não poderá compreender o mundo. E assim fundamenta sua asserção: “E eu digo que se deveria procurar estar morto. / Custe o que custe, antes de morrer. Teria que fazer todo o possível para estar morto. / As águas te dizem - o fogo, o ar e a luz, com clara linguagem. Estar morto. / O amor te diz, o mundo e as coisas todas, estar morto.”
A partir desta concepção, que implica uma peleja entre elementos ontológicos e elementos gnoseológicos, cuja expressão linguística por sua vez demanda uma renovação semântica original, projeta-se toda a obra poética de Sáenz: sua visão do mundo se desenvolve paulatinamente através de todos os seus livros. O título do primeiro volume expressa a experiência da intenção poética de obter o conhecimento completo do ser na vida e na morte mediante a via puramente intelectiva, chame-se esta via dos sentidos interiores ou via do racionalismo gnoseológico. Essa experiência está manifestada em Muerte por el tacto: “Meu sonolento corpo desperta finalmente, e me encontro frente aos meus amigos mortos”. Mediante seu exercício ascético adverte, como há foi assinalado, que as pessoas carecem da faculdade de não ser porque não sabem que podem eleger entre não ser e ser, o que, ao contrário, “sabem em toda magnitude os meus amigos mortos e falo deles com segurança e orgulho / são meus mestres / o que morreram diz que existiram eternamente antes que eu existisse / sua morte e suas mortes me ensinam não somente que posso ser fabricante de açúcar mas sim marinheiro, relojoeiro, pintor, físico, geomântico e muitas outras coisas / que posso ter além disto desconhecidas profissões…”. Vinte anos depois, estas ideias reaparecem em um contexto amplo onde se pode observar de modo mais completo a cosmovisão desta poesia. Vimos que na experiência da morte encontra-se a sabedoria. E alcançar esta sabedoria é alcançar o essencial, revelar a verdade nas fontes incorpóreas do conhecimento. A metáfora das “trevas”, com suas conotações de interioridade e obscuridade, representa precisamente a vivência na proximidade do conhecimento essencial do Ser. Em Las tinieblas o poeta diz: “A fonte da sabedoria, da força e da experiência, constituem os mortos; / a porta sempre aberta, / o caminho dos que transitam com rumo certo, no viver real e radical, / constituem os mortos. / Pois nada tão obscuro como a obscuridade dos mortos. / … / por isso os homens amantes das trevas, / esquadrinhando o estar dos mortos encontram o caminho certo. / No cheiro e na forma, no peso, na densidade. No tato e no ouvido - o objeto não se vê.”
5. Enfim, os textos poéticos de Jaime Sáenz constituem uma contribuição original e insólito à renovação da linguagem na lírica hispano-americana contemporânea. São a expressão de uma experiência que poderia ser definida como possibilidade do conhecimento da essência do ser. Implicam uma função poética de indubitável índole epistemológica. Daí que seu discurso, estruturado pela agudeza de argumentos, sofismas, paradoxos e aporias, dê lugar a uma retórica renovada: a retórica da surpresa.

NOTAS
Ensaio publicado originalmente em número especial (18-19) de INTI Revista de Literatura Hispánica (Rhode Island. USA. 1984), edição organizada por Pedro Lastra e Luis Eyzaguirre, cujo título geral é Catorce poetas hispanoamericanos de hoy. O poeta Oscar Rivera-Rodas é também autor de Dársena en el tiempo (1966) e Testimonio de la ausencia (1969).
1. A leitura destes textos induzem a recordar certas concepções já registradas nas etapas iniciais da história da filosofia ocidental. O conceito do Ser essencial da poesia de Sáenz mostra qualidades similares ao conceito do ente aliático dos filósofos pré-socráticos. Assim, Parmênides, partindo do abstrato (a “Via da Verdade”, por ele denominada) e após negar o tempo, o vazio e a pluralidade, define o Ser como o Uno, indivisível e imóvel. Porém, frente a essa argumentação realizada mediante o pensar e a razão, aponta outro recurso, a “Via da Opinião”, onde introduz o concreto e o mundo das aparências, prescindidos de sua anterior argumentação.
2. Ferrater Mora afirma que o “sentido ascético da filosofia deve ser buscado nesta vontade de desnudar as coisas, não pelo simples afã de desnudá-las, mas sim para ver o que são as coisas desnudas e desprovidas do inecessário.
3. Mesmo no caso de Aniversario de una visión (1960), cujo discurso é uma evocação do amor como experiência já passada, a visão não se destaca como uma potência presente: permanece na memória. O antepenúltimo verso do volume diz: “Faz-me saber, perdida e desaparecida visão, o que era que guardava teu olhar”.
4. Nos últimos poemas de Sáenz observa-se uma tendência notável ao distanciamento das experiências fundamentais sênsicas - e limitadas - de suas primeiras composições.
5. A unidade essencial dos opostos foi reconhecida por Heráclito, ao afirmar que não existe nunca uma divisão absoluta entre os opostos; mais ainda, nenhum dos opostos pode existir sem sua parelha: “O mesmo é vida e morte, velar e dormir, juventude e velhice; aquelas coisas tornam-se estas e estas aquelas.” 



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Organização a cargo de Floriano Martins © 2016 ARC Edições
Artista convidado: Paul Cézanne
Imagens © Acervo Resto do Mundo
Esta edição integra o projeto de séries especiais da Agulha Revista de Cultura, assim estruturado:

1 PRIMEIRA ANTOLOGIA ARC FASE I (1999-2009)
2 VIAGENS DO SURREALISMO
3 O RIO DA MEMÓRIA

Agulha Revista de Cultura teve em sua primeira fase a coordenação editorial de Floriano Martins e Claudio Willer, tendo sido hospedada no portal Jornal de Poesia. No biênio 2010-2011 restringiu seu ambiente ao mundo de língua espanhola, sob o título de Agulha Hispânica, sob a coordenação editorial apenas de Floriano Martins. Desde 2012 retoma seu projeto original, desta vez sob a coordenação editorial de Floriano Martins e Márcio Simões.

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