sábado, 21 de maio de 2016

GONÇALO MELLO MOURÃO | O Sertão grego de Gerardo Mello Mourão


Quero, em primeiro lugar, agradecer duplamente aos organizadores desta mesa-redonda: pelo fato de a terem programado e por terem chamado a participar dela o Carlos Mourão, aqui a meu lado. Poucos poderiam falar melhor aqui da obra deste ipueirense que foi Gerardo Mello Mourão.
Em segundo lugar, quero agradecer por ter sido convidado a esta extraordinária VIII Bienal do Livro do Ceará, em Fortaleza. Faço estes agradecimentos aqui na pessoa da Adriana Botelho, a quem tanto devo pelo amor que tem à obra de meu pai. Mas quero, também, e publicamente, repetir o que em privado já disse aos que me convidaram: não sei se eu caibo aqui. Na verdade, o que esta audiência pode esperar que um filho diga de seu pai? Ou, pior ainda: o que pode um filho dizer de seu pai que aqui, nestas circunstâncias, interesse? Pois, na verdade, estamos aqui para falar de aspectos literários da obra de meu pai. De fato, não de meu pai, mas do poeta Gerardo Mello Mourão. Que era meu pai.
Posso trazer uns testemunhos familiares, dizer, por exemplo, que meu pai gostava de uma rede, que ia à missa aos domingos, que tomava café sem açúcar, que escrevia a qualquer hora do dia ou da noite e em qualquer lugar.
Poderia elencar uns poetas de que gostava e de que me ensinou a gostar, ou de outros que desprezava. Poderia falar da memória prodigiosa que tinha, das centenas e centenas de versos que sabia de cor em uma dezena de línguas que lia, escrevia e falava; e não só de versos, pois eu mesmo o ouvi recitar uma vez ou outra, por exemplo, trechos inteiros de Cícero ou da Bíblia, mas também alguns dos primeiros capítulos de Iracema.
Iracema…
Lembro dele contar como decorou trechos e trechos de Iracema ainda pequeno, antes mesmo de aprender a ler, apenas ouvindo a leitura que sua mãe lhe fazia. E talvez com Iracema eu possa tentar falar um pouco dum tema desta mesa-redonda que me foi tão felizmente sugerido pelos organizadores: "O sertão grego de Gerardo Mello Mourão".
O que é Sertão e o que é Grego?
Bem, em se tratando da obra de meu pai, eu diria que o Sertão é o que é grego e que Grego é o sertão. Aparentemente, é uma tautologia. Mas é e não é. Em primeiro lugar, quase toda boa poesia é tautológica, repete o que foi dito, de outras maneiras. Por exemplo - e vou dar um exemplo bem radical - o próprio Marinetti, um dos maiores poetas fundadores da Europa e da modernidade, ao gritar alto e bom som, há exatos cem anos atrás, no Manifesto Futurista: "Matemos o luar!", ou ao afirmar que "um automóvel de corrida é mais belo que a Vitória de Samotrácia", o que buscava era maneiras novas de proclamar aquela vontade de poder do homem sobre a natureza e sobre o passado, que já encontramos em Homero, por exemplo, na cena de Aquiles combatendo contra o rio Escamandro. É ruim toda poesia que procura ser diferente sem ter consciência de ser tautológica. É a capacidade tautológica da boa arte, aliás, que fundamenta uma cultura. Mas tudo isto, como gostava de dizer meu pai, é uma outra história.
O Sertão de meu pai é novo porque é tautológico, porque é, como com muita felicidade propuseram os organizadores deste encontro, Grego.
Não é um sertão inventado - como certos sertões literários malogrados - nem é um sertão descoberto - como os que depois se perdem. É um sertão que é. Como o Deus da Bíblia, que é o que é. Aliás, um Deus tautológico.
O mundo é grande, mas o sertão é maior. O Grego é muito maior que a Grécia que nós conhecemos. Ambos, na verdade, o sertão e o grego, não têm limites, porque ambos existem naquela dimensão estranha - estranha e tautológica - que é a dimensão de si mesmos. Toda noção que se limita a si própria é infinita; isto, aparentemente, é um paradoxo, mas mais adiante vou falar de paradoxos. A Grécia, quando é sertão, é infinita e o Sertão, quando é Grécia, também.
Está claro que não me refiro aqui à Grécia geográfica ou histórica, nem ao Sertão geográfico ou sociológico - Deus nos guarde, aliás, dos sertões sociológicos. Estou falando daquela Grécia que está no Sertão e daquele Sertão que é grego.
Meu pai diz, nuns versos de um poema mais recente, intitulado Epitáfio 3, o seguinte:

…Ipueiras, informantes informam,
é um distrito - arrabalde talvez,
de Tróia onde jazem
ruínas da comarca do Ipu e da capitania do Siarah Grande

e diz também, um pouco mais adiante:

Nada houve
nem antes nem depois…

Antes de Tróia ou depois de Tróia, antes ou depois daquela comarca do Ipu na capitania do Siarah Grande.
A Grécia foi nossa aurora, nossa efervescência e nossa sepultura. Somos o que fomos ali pois dali guardamos o que ainda temos de perene: o espanto de existir, o conhecimento ontológico de nossa ignorância transcendental.
Nem Platão nem Aristóteles sabiam, por exemplo, que o sangue circulava, que a terra girava em torno do sol, que os ventos parece que não são mandados pelos deuses, que os micróbios existem, que não é Posseidon quem sacode as ondas do mar; não sabiam nada disto. Mas até hoje discutimos e pensamos em torno do que eles pensaram, não de seu pensamento científico, mas do que pensaram sobre nossa existência, sobre nossa passagem pela terra, sobre o que criamos. Sobre o que fomos, o que somos e o que seremos.
Vivemos hoje ainda dentro do que pensavam Platão e Aristóteles e os outros. O poeta Apollinaire, no começo do século XX, expressou magistralmente isto tudo em um verso, em que se perguntava: "et toi, mon coeur, pourquoi bats tu?" - e você, por que bate, coração?
Esse espanto, que faz perguntar ao coração por que bate e que fica sem resposta, testifica, ao mesmo tempo, que bate o coração e o poeta, então, canta, simplesmente, o bater do coração, canta o bater da vida. A vida que começa, a vida que floresce e a vida que se acaba. A vida que é sempre nova nesta repetição.
A Grécia no sertão de meu pai é isto, é esta revelação da vida viva através da pergunta sem resposta sempre repetida: et toi, mon coeur, pourquoi bats tu?
A Grécia não tem respostas.
Nem o Sertão.
Ambos têm vida. Ambos são origem de vida. E ambos têm morte e perplexidade.
Meu pai não canta a Grécia nem a exalta, mas a reconhece e a repete no canto auroral do Sertão. O Sertão é a repetição da Grécia e a Grécia, na obra de meu pai, é a repetição do Sertão. Ambos são o espaço fundamental e o tempo fundamental. E o fundamental, o que fundamenta, não tem antes nem depois: cria-se a si próprio e os muitos depois que vêm a seguir é que o têm como seu antes.
O Sertão é Grego, na obra de meu pai, porque é fundador.
Sertão, em português, é uma palavra antiga, mais antiga que o Brasil. Sua origem etimológica parece ser controversa e significava, nos primórdios da língua, algo como espaços indômitos ainda desconhecidos do interior das terras. Podemos até ir mais longe e dizer que significava lugar sem história ou, o que talvez fosse mais preciso, lugar à espera da história.
Um dos primeiros cronistas do Brasil, Gabriel Soares de Souza, em certas passagens de seu livro diz, sobre o rio Doce, na Bahia, que "pelo sertão deste rio há muito pau-brasil" e também, sobre o rio São Francisco, diz que "pelo seu sertão dizem haver serras de ouro e prata". O sertão desconhecido dos rios! Este é o sertão que os rios dos versos de meu pai fecundam. É o sertão maior daquilo que é tocado pela primeira vez e que, neste contato, cria a memória do que virá depois. É o mesmo rio passando sempre pelo mesmo sertão. Sempre pela mesma Grécia.
E, nesse sentido, sertão não é apenas o sertão dos Inhamuns, mas é, também, o sertão do Pampa e da Amazônia, é o sertão urbano do Rio de Janeiro e de São Paulo e de todo o vasto mundo da Nicarágua à China, onde a aventura humana é a ebulição de um encontro ou de uma perda e por onde meu pai viveu sua peripécia.
O sertão da poesia de meu pai é como um gole de cachaça: o bom é o gosto que fica na boca e na garganta depois que se engole. O sertão é o que o verso consegue guardar. Ou, dito de outra forma, o sertão não existe, existem os versos e, neles, o sertão. Mas porque existe nos versos, permanece; e, de fato, existe.
Mas eu comecei falando disto tudo por causa da evocação de Iracema. Não a virgem dos lábios de mel e cabelos mais negros que a asa da graúna e de talhe de palmeira, mas o livro Iracema.
Muito esquematicamente, pois todos nós o conhecemos, todo o Brasil o conhece, o que o livro conta é uma história de encontro, luta, amor, vida, morte e esperança, no sertão, num sertão que se fundava, num sertão que nascia mítico e que assim permaneceu. Além, muito além daquela serra que ainda azula no horizonte, nasceu Iracema. Nasceu no século XVI, nasceu em 1865, nasceu ontem e nascerá amanhã. As serras ainda azulam, ainda buscam ser o céu, no horizonte. Além delas, ainda o sertão. O sertão onde José de Alencar plantou a criação do mundo, a criação do Brasil. Nesse sentido, Iracema é o primeiro romance épico da literatura brasileira.
Depois de tudo o que eu disse antes, posso dizer que Iracema é o primeiro romance grego de nossa literatura; grego, porque fundador. Grego como é grego o sertão na obra de meu pai.
Meu pai admirava a Bíblia como obra literária - e aqui trago um testemunho filial - tanto como a respeitava como revelação divina. E procurando emular aquela revelação, alguns de seus cantos do livro O País dos Mourões ele começou com a expressão evangélica "In illo tempore", naquele tempo. Qual tempo? Todos e nenhum: aquele. O tempo em que se fundava alguma coisa.
O Sertão da poesia de meu pai é grego não porque nele ou nela existam formas clássicas, belezas eternas, proporções áureas; é grego porque tanto o sertão quanto a poesia fundam alguma coisa. E esta coisa não é o novo mas o de sempre, o que se repete, a Grécia tautológica que ainda nos cria e nos provoca e que ainda nos resgata e nos leva à perdição, que nos dá esperança e que nos desespera. Naquele sertão e naquela poesia estão o perene e o passageiro; mas ali, o passageiro é que é o perene, porque só ele cria lembrança. Só nos lembramos daquilo que passou, só o que passou fica: o que não fica é o que pode estar sempre. É um paradoxo, mas é de paradoxos que se faz, também, a boa poesia e é de paradoxos que se faz o conhecimento.
O sertão da poesia de meu pai é este paradoxo do passado que é presente porque fundador. Aquele passado que é o presente de Iracema. É extraordinário, quanto a isto, o começo do primeiro canto daquele seu livro O País dos Mourões, onde ele começa dizendo que à esquerda e à direita iam caindo seu pai, seus avós, seus bisavós, seus tios e seus primos e todos caíram, mas, de repente, ele lança a constatação maravilhosa e trágica e diz:

Apalpa, meu amor, meu rosto apalpa,
não tombei:
sou eu.
Como venho dos mortos nem eu sei,
mas sei que na partilha me tocou
a herança de sobreviver;
vou devorando a terra com meus olhos
que a terra não comeu, a terra
que comeu tantos olhos e da qual
os meus hoje se nutrem.

Como é tautológica e paradoxal, a boa poesia é sempre, também, ressurreição. Como diz meu pai neste trecho que li, ele, poeta, veio dos mortos. Ressurgiu. Pois, na verdade, o que nasce morre, mas só ressuscita aquilo que morreu.
O Sertão da poesia de meu pai é a ressurreição da Grécia. Não a ressurreição de Apolo ou de Tróia, mas a ressurreição do tempo fundador. Mais do que o tempo, dos gestos fundadores.
Ele diz, em seu livro Rastro de Apolo, o seguinte:

… e ali
o amor é morte e a morte
o estratagema da ressurreição.

Não é uma poesia de evocação, é um estratagema de ressurreição, é uma poesia de criação. E porque é de criação, esta criação tem que se dar, também, ao nível da linguagem poética. Nesse sentido, é grega, também, a linguagem de meu pai. Não porque use termos gregos ou sintaxes gregas, não porque semeie, aqui e ali, palavras em grego, mas porque trata de manifestar-se através das expressões mais puras da língua. Trata de conceder às palavras uma força e um significado que estão dentro delas mesmas, trata de procurar ressuscitar as tautologias paradoxais contidas no âmago da palavra. Retomando uma noção a que me referi atrás, aquela sobre Deus de que ele é o que é, também as palavras, para a poesia de meu pai, são o que são. Não são palavras inventadas, não são sintaxes inventadas que se perdem fora de si mesmas como em outras obras malogradas. O que suas palavras são é o que ele tira delas; o que elas são é a metáfora que elas contêm em si mesmas e que só o poeta tira delas, porque só o poeta pode devolver a elas o que delas tira. E é esta devolução, esta espécie de re-incorporação morfológica que dá vida nova a uma palavra velha, que ressuscita a palavra e, ao ressuscitar a palavra, ressuscita um mundo.
A Grécia ressurge sempre e ressurgiu no sertão da poesia de meu pai. E eu estou certo de que este sertão, que meu pai ressuscitou em sua poesia, também ressurgirá sempre, pois o que se funda em poesia morre e ressuscita sempre.
E encerro com uma frase de meu pai, que com frequência dizia: "eu não posso provar nada; mas eu sei".
Muito obrigado.

*****

GONÇALO MOURÃO (Brasil, 1950). Embaixador, poeta e ensaísta. Serviu nas Embaixadas do Brasil em Roma, Argel, Londres, Assunção, Paris e Lisboa. Foi Vice-Diretor do Instituto Rio Branco, do Ministério das Relações Exteriores.  Agulha Revista de Cultura # 67, Janeiro de 2009.




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Organização a cargo de Floriano Martins © 2016 ARC Edições
Artista convidado: Alberto da Veiga Guignard
Imagens © Acervo Resto do Mundo
Esta edição integra o projeto de séries especiais da Agulha Revista de Cultura, assim estruturado:

1 PRIMEIRA ANTOLOGIA ARC FASE I (1999-2009)
2 VIAGENS DO SURREALISMO
3 O RIO DA MEMÓRIA

Agulha Revista de Cultura teve em sua primeira fase a coordenação editorial de Floriano Martins e Claudio Willer, tendo sido hospedada no portal Jornal de Poesia. No biênio 2010-2011 restringiu seu ambiente ao mundo de língua espanhola, sob o título de Agulha Hispânica, sob a coordenação editorial apenas de Floriano Martins. Desde 2012 retoma seu projeto original, desta vez sob a coordenação editorial de Floriano Martins e Márcio Simões.

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